Murano reinventado

Murano reinventado

Capa: Murano reinventado

Artista da transparência: assim se autodefine o italiano Mauro Bonaventura. Rendido desde muito  cedo às mil e uma faces da arte vidreira, ele dedicou a carreira à criação de uma linguagem que lhe permitisse reinventar o tradicional murano,  técnica de moldar o vidro a quente, por meio do sopro, que tratou de conhecer e explorar em cada detalhe  ao  longo  de  seus  mais  de  20 anos de atuação na área. “Meu primeiro contato com o vidro soprado foi aos 18 anos. Formado em eletrônica e à procura de um emprego na área, acabei aprendiz em uma fábrica de vidro que aplicava técnicas de sopro em seus pro- cessos produtivos.”

 

A   paixão  pelo  movimento  do  vidro em estado de fusão foi imediata,  relata Bonaventura. “Fiquei absolutamente fascinado pelas propriedades que o vidro assume quando incandescente. Foi quando  entrei pra valer no universo da decoração  e da  arte  vidreira,  de  onde nunca mais consegui sair.” A busca por um método de produção que se apropriasse das técnicas usadas na pequena cidade italiana de Murano há mais de sete séculos, adicionando  a elas novas nuances,  acabou  por  dar  vida a peças com uma identidade única.

 

As tramas e formas intrincadas  de Bonaventura são resultado de anos de experimentação com o material, em tentativas que exigiram muito  empenho  e, sobre- tudo,  boas doses de concentração  e paciência. “Redes complexas, fluxo contínuo, estruturas  em formato esférico que encerram  miniaturas  humanas,  escultu- ras em tamanho reduzido, rostos, detalhes, emaranhados  que simulam  linhas, novelos, entroncamentos,  ramificações. Tudo para representar as incontáveis co- nexões  que  permeiam  o  universo.  Foi desses conceitos e imagens que surgiram as primeiras obras”, diz o artista. Engajado na arte vidreira desde a ado- lescência,  foi  em  1992,   aos  27  anos,que Bonaventura viu sua trajetória pro- fissional e artística dar uma reviravolta. Convidado para trabalhar ao lado de um renomado mestre vidreiro italiano, ele teve a oportunidade de mergulhar  fun- do nas técnicas e ferramentas usadas no lampworking, trabalho em vidro sopra- do em que uma tocha ou lamparina é inicialmente usada para derreter o vidro, que na sequência é soprado  e moldado com a ajuda de ferramentas e das mãos em movimento.   “Foi como descobrir um  mundo  novo  quando  percebi  que, com essas técnicas à disposição, seria possível explorar o vidro como nunca antes tinha  imaginado”,  lembra  o artista. “Depois de alguns meses de muita observação e prática, minha mente se expandiu  e passei a vislumbrar  infinitas possibilidades, e junto com isso veio o desejo de abraçar cada uma delas, em busca do processo ideal.”

 

Foi quando o até então aprendiz decidiu se tornar  também  um mestre,  seguindo seu próprio caminho e desenvolvendo a fundo sua própria linguagem. “Sentia necessidade de firmar minha identidade no campo da escultura”, lembra ele. “Conforme desenvolvia novas habilidades, percebia quanto a técnica me permitiria explorar um modo novo e excitante de me relacionar com o vidro com mais liberdade  e intimidade.  Então decidi que era hora de abandonar  o emprego na fábrica e canalizar todas as minhas energias na técnica do lampworking.” Foi quando Bonaventura  abriu seu próprio  estúdio e se lançou como artista em tempo integral.

 

Arte ramificada

A identidade  que Bonaventura perseguiu  com afinco acabou surgindo de forma natural, e ganhou corpo com o tempo, conforme o artista se sentia mais seguro sobre os rumos que pretendia  dar à sua criação. Em busca de se aperfeiçoar, matriculou-se no Liceu de Artes de Veneza, onde por quatro anos frequentou aulas de escultura, desenho, pintura e anatomia. Em 2003, recebeu seu diploma, e desde então vem expandido sua arte em múltilplos vieses. “Atualmente tenho me dedicado a reproduzir cabeças humanas, a partir de um estudo aprofundado da anatomia do cérebro”, conta.

”A ideia representada  é a de que para cada ação da mente ou de consciência existe uma ação cerebral correspondente. Tudo está interligado.”

 

Quanto às técnicas empregadas, o mestre garante não haver mistério. “Os materiais e ferramentas são basicamente os de sempre: hastes de vidro, tesouras, pinças e uma tocha de gás e oxigênio. Nada mais.” Já os desafios criativos estão em constante transformação. Conforme suas peças foram ganhando  novos contornos,  o artista passou a se dedicar à produção  artesanal de obras de arte cada vez maiores. “Os fornos industriais permitem a produção de grandes peças com facilidade. O desafio é produzir  peças de tamanho  similar, porém com métodos exclusivamente artesanais”, comenta o artista.

A obra de Mauro Bonaventura pode ser conferida no famoso Corning Museum of Glass, em Nova York, e em inúmeras galerias ao redor do mundo. Sua produção mais recente está em exposição na Venice Projects, galeria em Veneza unicamente dedicada à arte vidreira contemporânea, na qual é o primeiro artista vidreiro veneziano a ter uma exposição exclusiva. “Ele certamente é um artista diferenciado, um mestre com seu lugar garantido  no universo  da arte vidreira mundial”, comenta o curador da galeria, Adriano Berengo. “Como raízes de uma  árvore,  veias de um  sistema circulatório ou axônios de uma célula neural, seus infinitos ‘tentáculos de vidro’ têm-se expandido e ocupado novos espaços, estabelecendo um paralelo com o mundo  de possibilidades e contra- dições que a arte propicia, assim como a mente humana.”